4. Pulga Atras Da Orelha
― A Toni acabou de me mandar mensagem perguntando se a gente vai na Calourada ― disse Emily, deitada na cama perfeitamente arrumada de Daniel. Os dois estavam, é claro, no quarto do rapaz do alojamento da universidade, que era tão pequeno que Emily não sabia como é que não atacava a claustrofobia dele.
Ela costumava se deitar assim no quarto antigo dele também, que Daniel dividiu com o irmão mais velho durante a vida toda. O irmão dele, assim como Emily, não saiu da casa dos pais quando entrou na faculdade porque eles moravam na Área Norte de Valência e graças a Santo Antônio dava para pegar o trem todos os dias rumo à Cidade Universitária sem ser um sofrimento muito grande. Quando Daniel disse que viveria no alojamento, todo mundo ficou chocado. Emily já estava contando com a companhia dele para voltar para casa, assim como eles faziam na escola e pegavam o ônibus da linha Amarela, mas aquele traidor preferiu a comodidade de morar no campus e deixá-la sozinha pela primeira vez na vida.
Emily não lidava muito bem com precisar fazer as coisas sozinha.
― Eu vou fazer Medicina, Mili. Minha carga de estudo vai ser muito pesada ― ele se justificou na época, o que tirou uma boa revirada de olhos da garota, que não queria ouvir a razão. Ela normalmente era uma garota doce e compreensiva, mas mexer com qualquer coisa que envolvia a estabilidade da sua relação com Daniel a deixava aflita. E o que mais poderia ser uma mudança maior do que eles precisarem se separar por fazerem faculdades diferentes?
― Eu sei. Eu sei ― ela disse por fim, dando o braço a torcer porque não era do seu feitio ser implicante. Às vezes era o que Emily queria, aprender a fazer drama, criar caso pelas coisas que a machucavam da mesma forma como suas irmãs faziam. Elas tinham a “personalidade forte demais”, segundo seus pais, e ambos ficavam aliviados por, pelo menos, a filha do meio ser um anjo.
Emily, a adaptável. Emily, a maleável.
Ela soltou um suspirou e fez um esforço para seus olhos não se encherem de lágrimas, mas sentiu a ardência e o bolo na garganta. Ela o engoliu e mordeu os lábios carnudos.
― Eu só tô com medo, só isso ― foi sincera, porque era com Daniel que estava falando. Ele a entendia melhor do que todas as outras pessoas e ela sentia que, pelo menos com ele, conseguia ser ela mesma. Era essa a maior vantagem de ter um melhor amigo, especialmente um que você conhecia desde que eram praticamente bebês. Os pais deles ficaram amigos ao se conhecerem no parque da vizinhança onde foram morar depois que se casaram e, desde então, Daniel e Emily estavam sempre juntos por causa deles. Eles sempre estiveram na vida um do outro, mas felizmente se tornaram bons amigos também. Os melhores amigos.
― Mili, eu te juro, nada vai mudar entre a gente não ― ele disse na ocasião.
E enquanto Emily relia a mensagem de Toni, esparramada na cama dele do alojamento da faculdade um ano depois, as coisas realmente pareciam estar funcionando. Ambos tinham sobrevivido ao ano de calouros e a garota não tinha do que reclamar.
Ele se virou para ela, ainda sentado na cadeira da escrivaninha onde estivera organizando suas coisas. Emily levantou os olhos da tela e encarou o rapaz, que estava usando a camisa branca com uma pimentinha bordada da Pimenta Valley que Emily tinha dado de presente para ele. Ela mesma estava usando também uma saia xadrez que comprou lá e caiu como uma luva no seu guarda-roupa cheio de saias, cardigans e coletes de lã. Naquele dia quente ela estava usando uma blusa branca de mangas bufantes e um decote coração que herdou da irmã mais velha. Ela gostava de se vestir de um jeito bastante específico, e passava muito tempo procurando roupas em lojas online e nos múltiplos brechós espalhados pela cidade, simplesmente porque isso a deixava feliz.
Daniel não compartilhava do mesmo hábito, mas felizmente Emily havia feito amizade com Toni.
― Nós vamos ou não? ― ela perguntou ao amigo.
Ele deu de ombros, porque sinceramente não estava com ânimo para sair, mas a ideia de ficar sozinho com os próprios pensamentos dentro do quarto a noite inteira o fazia se revirar debaixo da própria pele. A amizade com Emily podia até ser a mesma, mas muita coisa tinha mudado para Daniel nas últimas semanas. Ele finalmente teve coragem de fazer algo sobre o qual vinha pensando há muito tempo, mas as coisas tinham saído errado de um jeito bastante inesperado.
Ele imaginava que seus pais até poderiam ficar chocados com o fato de ele ser bissexual, mas realmente não esperava pelo silêncio absoluto.
Para começar, a mãe de Daniel desmaiou, mas desde que recobrou os sentidos ela não conseguia mais olhar nos olhos do filho. O pai dele se esquivou completamente do tópico, se escondendo atrás dos “nervos” da esposa, que estava frágil demais para lidar com isso e a usando como desculpa para ele mesmo fingir que nada estava acontecendo. O irmão mais velho de Daniel sempre foi um babaca, então os olhares de reprovação dele e seu discursinho de “você realmente precisava de toda essa atenção agora?” não surpreenderam.
Ok, a mãe deles tinha desenvolvido uma enxaqueca muito forte nos últimos meses e estava tentando diferentes tratamentos para resolver a situação. Mas se Daniel fosse esperar o momento em que sua mãe hipocondríaca estivesse cem por cento para descobrir que ele era bi, talvez isso sequer fosse acontecer nessa vida.
Entretanto, eles simplesmente fingirem que Daniel não tinha dito nada e que o rapaz estava apenas “fora de si” era mais desconcertante do que se eles tivessem feito um escândalo. Agora, o garoto não sabia como agir, não sabia como se reafirmar porque claramente o canal da conversa estava fechado por tempo indeterminado e, assim, ele sentia que precisava pisar em ovos dentro da própria casa, incapaz de encontrar conforto em lugar algum.
Motivo pelo qual decidiu levar suas coisas de volta para o alojamento após as férias de verão na primeira oportunidade que teve. E carregou Emily junto.
Ele piscou e encarou a amiga. Ela sabia, pelo modo como ele pressionava a mandíbula, que Daniel ainda estava tenso. O verão intenso, não só por causa da situação com seus pais, mas principalmente pelo motivo que o fez finalmente ter coragem de contar a eles sobre sua orientação sexual.
E agora ele se sentia um idiota.
― Eu acho que vai ser bom pra você ver gente ― Emily disse de um jeito doce. ― O amigo de Caê chegou na cidade, a gente vai poder conhecer ele!
Dan abriu um sorriso xoxo, mas acabou assentindo. Emily sempre tinha razão, era bom ouvi-la.
― Ah, então você tá animada pra conhecer o gajo? ― ele indagou, arqueando uma sobrancelha. Emily abriu a boca para responder, mas saiu apenas um engasgo.
― Não desse jeito ― ela disse, sentindo as bochechas corarem. Dan riu, pois era exatamente essa a reação que ele esperava. Emily se sentou e jogou uma almofada na direção dele, que sentiu o aperto no peito afrouxar um pouquinho. ― Você não inventa de dizer isso na frente de Caê.
― Por que não? Ele pode ser bonitinho ― Dan continuou.
― Então dá em cima dele você ― sugeriu, rebatendo com um sorriso vitorioso.
― Eu realmente posso ― respondeu o rapaz, dando de ombros.
E Emily sabia que, se ele quisesse mesmo, o garoto novo não teria como escapar do seu charme. Ninguém parecia capaz de escapar, na realidade. Ele nunca foi tímido, mas nos anos de escola também não era nenhum conquistador ou popular entre as meninas. Porém, desde que começou a faculdade no ano anterior, Emily viu o interesse das pessoas no seu melhor amigo crescer exponencialmente.
E quem podia julgá-los? Daniel realmente tinha se tornado um jovem muito atraente desde que começou a deixar a adolescência para trás, com um magnetismo tanto na sua aparência quanto na personalidade sociável. Ele tinha ombros largos e uma estatura mediana que te fazia sentir protegida, além de ter um sorriso contagiante de dentes branquinhos na pele negra e um toque bastante firme. Daniel tinha uma expressão de conforto, com olhos escuros e calorosos, e uma covinha no queixo quadrado que deixava as pessoas particularmente interessadas. Sem contar no tamanho do seu pomo-de-adão.
Sim. Não era difícil de Emily entender o motivo pelo qual ele se tornou popular.
Apesar disso, tinha sido um tanto estranho a princípio, pois a garota começou a se questionar sobre a própria vida amorosa (ou, melhor dizendo, a falta de uma vida amorosa), muito mais do que quando estava no ensino médio. Ela não se achava bonita como ele, e muito menos tão magnética. Ela era uma garota gorda e nem um pouco sexy, o que a causava certa frustração porque parecia que as pessoas automaticamente a tratavam como criança ou não a viam como uma opção. E, sinceramente, Emily Kathur estava ansiosa para ser uma opção e ser vista como Dan via as pessoas com quem ficava, com o desejo nítido em cada gesto.
Ele estava sempre por aí com uma “namorada” nova… depois também “namorados” novos… e Emily se distanciava cada vez mais dessa nova pessoa que ele estava se tornando, mesmo que o amasse da mesma maneira. Caramba, até o nome dele tinha mudado, já que todo mundo na UniVale o chamava de Dan, e não de Daniel.
Mas, ainda assim, eles estavam sempre juntos.
― Bom, mas pra isso acontecer, precisamos ir na calourada. Caê e Toni vão encontrar com a gente lá.
Daniel suspirou, se dando por vencido. Ele pegou o boné azul em cima da mesa e o colocou na cabeça, como um anúncio de que estava pronto.
― Tá bom, então. Mas espero que você me pague pelo menos um drinque de caxiquiri.
Emily soltou uma risada de escárnio enquanto se levantava da cama e ajeitava sua saia. Ela encarou Daniel nos olhos, cruzou os braços e disse.
― Isso você pode pedir pro seu futuro namorado.
***
Emily não era a maior fã de festas da universidade, especialmente as calouradas, que, como as primeiras festas do ano, tendiam a sair um pouco de controle. A calourada do pátio da reitoria, entretanto, era um grande clássico da UniVale, que sempre reunia os alunos que já estavam de volta e era motivo de fofocas que podiam durar o semestre inteiro. Grandes eventos aconteciam na Calourada da Reitoria, em que todo mundo tinha energia de sobra no início do ano letivo e queriam causar uma impressão ― fosse ela boa ou ruim.
O time de rúgbi geralmente estava cercado de pessoas querendo se aproximar, mas Emily apenas os observava de longe, alheia à bolha em que eles viviam, mas não ao magnetismo que provocavam. Ela nunca foi muito ligada em esportes nem nada do tipo, mas quando uma instituição inteira vive a base de um grupo específico de atletas é difícil não olhar para lá de vez em quando.
― Então quer dizer que o seu amigo é um deles? ― Emily perguntou, incrédula. Ela nunca tinha conhecido um jogador de rúgbi pessoalmente e parecia um tanto surreal.
― Do jeito que você tá falando parece até que eles são alienígenas.
― Bom, de certa forma eles são mesmo ― Dan saiu em defesa da amiga, mas Caê apenas deu de ombros, dando um gole na bebida já em suas mãos.
― Jogadores de rúgbi. Onde vivem? O que comem? Como sobrevivem em meio a nós, reles mortais? ― ironizou Toni, com a mão em punho imitando um microfone. Ela soltou uma risada, acompanhada por Caê, e tirou um sorriso do rosto de Emily também, que a empurrou com o ombro.
― Ainda bem que temos o Vic por perto agora pra poder responder todas essas questões importantes ― Caê entrou na brincadeira.
― E cadê ele, aliás? ― Dan quis saber. Negaria se alguém perguntasse, mas tinha ficado mexido pela provocação de Emily sobre “dar em cima dele”. Não que ele quisesse… não era isso. Mas também não deixava de querer. Ele sequer sabia como era o garoto.
Mas Daniel não era de ferro.
Ele sentiu um aperto no peito ao se lembrar da negação dos pais sobre sua sexualidade e a coragem de sequer descobrir o que podia acontecer entre ele e Victor minguou. Cruzou os braços, em uma postura tensa que não passou despercebida a Emily. A garota estava sempre de olho no amigo, especialmente depois do que aconteceu. Ela queria poder ajudá-lo, mas não sabia como. Até porque ela nunca precisou sair do armário para os pais, pelo menos não ainda. Eles nunca conversaram sobre isso, mas Emily sabia que não seria um problema, já que sua irmã mais nova era lésbica. Ela nunca teve um relacionamento antes e por isso nunca sentiu necessidade de conversar com os pais sobre ser bi. Na verdade, ela não sabia porque Daniel decidiu contar para os pais, sendo que não havia nenhuma necessidade. Ele não estava saindo com ninguém, não estava apaixonado… ou será que estava?
A pulga atrás da orelha de Emily a deixou alerta.
― Tá lá com o time ― Caê informou o paradeiro de Victor. ― Provavelmente descobrindo sobre o trote.
― Argh esse negócio é tão arcaico, pelo amor de Santo Antônio ― disse Emily. Ela era 100% anti-trote e diria isso a quem quisesse ouvir. Era praticamente uma heresia em se tratando de uma aluna da UniVale, mas Emily Kathur era uma mulher de convicções.
― Eu tô é curiosa pra saber o que vai ser ― Toni admitiu. ― Será que o gajo vai sobreviver?
― Isso é o que vamos precisar descobrir ― disse Caê.
Mas um minuto depois, quando Victor se aproximou deles com o rosto pálido e nenhum brilho dos olhos, a resposta parecia bem nítida.
Oie, gente!!!!! Tô atrasada pq era pra ter postado na quinta-feira, mas me perdoem. Essa última semana foi o CAOS pq minha cachorrinha ta doente, e aí já viu né ): Mas ela tá estável agora, fazendo tratamento 💖
Eu tava doida pra publicar esse capítulo pq teve uma mudança significativa sobre o Dan 👀
Estamos de olho nesse senhor e seus segredinhos...
Beijos e queijos, câmbio desligo.
gente, como eu amo essa história... tô saboreando cada capítulo e só melhora !